ACARTES

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segunda-feira, 4 de abril de 2011

Célio Turino e os Pontos de Cultura

Foto: André Simas
Na mesa do restaurante, o historiador Célio Turino não dispõe de melhores artefatos, além de um guardanapo e uma caneta, para auxiliá-lo numa explicação. No pedaço de papel, de modo improvisado, faz alguns esboços. Há uma pirâmide invertida, com o topo maior representando o Estado e, na ponta que afunila, escreve-se “povo”. No mesmo guardanapo, Turino desenha outra pirâmide, na posição regular, mas inverte o sentido: Estado, agora, está no topo que afunila, e “povo” é a base maior. A primeira figura, explica, é o que geralmente se vê nas gestões em todo o mundo – o Estado, detentor dos recursos, e determinando o que é Cultura. A segunda figura representa a transformação que o historiador realizou quando esteve à frente da Secretaria da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura, entre 2004 e 2010.
Turino já está acostumado com a combinação de improvisação objetiva e citações filosóficas de Spinoza e Vygotsky . Em apenas 40 dias, colocou em atividade o Ponto de Cultura, programa idealizado por ele e que foi formulado a partir das idéias de compartilhamento e desenvolvimento de uma rede entre Estado e Sociedade. Hoje, o país registra 3.000 Pontos de Cultura (PCs), que descentralizam a ação cultural e tornam evidentes manifestações artísticas que antes apenas eram consideradas folclore.
Ao se colocar novamente o povo na base maior, o Estado deixa de ser o responsável por autenticar o que é Cultura. Mas não se trata de enfraquecimento do Estado, senão de um processo de desenvolvimento do “Estado-Rede”. Para Turino, antes dos PCs, não havia no Brasil uma política pública estruturada para fomentar o protagonismo da sociedade e da autonomia. Ao desmanchar as Bases de Apoio à Cultura (BACs), criadas no inicio do governo Lula, Turino mudou o foco: tirou-o da estrutura física e o colocou sobre as pessoas, aquilo que está vivo.
Fora do governo federal, Turino reconhece certa preocupação com o futuro de sua criação. Segundo ele, o corte orçamentário do MinC, de 55%, afetará a transferência de recursos, podendo atingir cerca de 500 PCs. “Ou se reverte esse corte, ou se terá um calote previamente anunciado”, observa.
Sobre os últimos acontecimentos envolvendo a nova gestão do MinC e a Lei de Direito Autoral, Turino tem implicações não apenas políticas, mas filosóficas. “Posso dizer que há uma rede de milhares de comunidades se apresentando por elas mesmas. A composição do Cultura Digital é vital para a construção do Cultura Viva”, afirma.

Brasilianas.org – Como foi a construção das bases do Ponto de Cultura?
Célio Turino - Ele começou em Campinas, há mais de 20 anos, quando fui secretário de Cultura de lá, de 1990 a 1992. Naquele período, a gente desenvolveu uma ação com casas de cultura, que tinham o germe desse pensamento, que era da gestão compartilhada entre Estado e sociedade, desenvolvimento em rede e adaptação da realidade local. Pegávamos uma casinha de COHAB, que estava desativada, em um bairro distante da cidade, e ali virava um ponto. E assim sucessivamente, em garagens, no que era possível.  Depois, o programa se desestruturou na mudança de governo. Eu também fui mudando de rumo e, em 2000, vim trabalhar em São Paulo, onde fui diretor de Lazer, até quando fui chamado para ir ao Ministério da Cultura (MinC).

Qual era a situação quando você chegou para trabalhar no MinC?
Havia um desejo do presidente Lula de descentralizar a ação cultural. A solução encontrada em 2003 foi as Bases de Apoio à Cultura (BACs), que consistia na construção de um centro cultural pré-moldado, de estrutura metálica, e que seria reproduzido em periferias, favelas, cidades pequenas. A idéia era construção, não tinha o funcionamento, nem recursos para as atividades e para a manutenção. Isso caberia à comunidade, ou à prefeitura, desenvolver. Houve um embate de disputa política interna no MinC, em 2004, que gerou a saída do Secretário de Programas e Projetos da época, o Roberto Pinho.
A secretaria ficou durante seis meses sem secretário, até que chegaram a mim. O Gil [Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura] havia lido um livro meu (Na trilha de Macunaíma – Ócio e Trabalho na cidade), que na época ainda era uma tese e não tinha sido publicado, e tinha gostado. Fui chamado para desenvolver o programa, mas ainda eram as BACs. Quando entrei no ministério, propus que se mudasse o foco. Saímos do foco na estrutura e o colocamos no fluxo, no pulsante, no vivo. Porque a cultura acontece em qualquer lugar, e depende das pessoas, muito mais do que das estruturas, pois estas crescem com o tempo.

Em alguns setores, como na Saúde, a intensificação da descentralização gerou a segmentação, a fragmentação do sistema. No caso da Cultura, qual a natureza dessa descentralização?
O  slogan do MinC até 2002 era “A Cultura é um bom negócio”. Basicamente, o único mecanismo de financiamento da Cultura era o mercado e a renúncia fiscal pela Lei Rouanet. Esses grupos que emergiram com os PCs, eu sabia que existiam, em função da minha história, tinha circulação, e sabia que eles não eram visibilizados pelo Estado. No máximo eram tratados como grupos de cultura tradicional, como folclore; a prefeitura pagava um ônibus, dava um lanche.
Ou mesmo um grupo cultural numa favela: davam algum apoio, chamavam para alguma apresentação, mas não havia, até então, nenhuma política pública estruturada para fomentar esse protagonismo da sociedade e de autonomia.  Quando falo da gestão compartilhada, é entre Estado e sociedade; e o PC seria um elo de ligação e de comunicação nesse universo. Se você pegar a teoria do Habermas, da ação comunicativa, ela tem proximidade com esse pensamento.

O processo de implantação dos pontos foi precedido por algum mapeamento?
Foi muito rápido. Em 40 dias já estávamos com o programa pronto, decreto instituindo e edital público na rua. Com o edital, a gente inverteu a situação. Normalmente, o Estado define previamente no seu planejamento o que deve ser feito – ele cria uma roupagem e tenta adequar o que deve ser feito, e isso em todo lugar do mundo. O que fizemos foi o contrário; definimos alguns parâmetros, um deles o valor que é passado para o PC, que era, mais ou menos, R$ 5 mil por mês (hoje seriam R$ 180 mil em três anos). E o grupo é que devia dizer qual a solução para o problema, se ele quer trabalhar com violinos ou com o resgate de algum idioma indígena. Eu tinha a confiança de que daria certo.
Tivemos um bom retorno no início, cerca de 850 projetos em 2004 – era para selecionarmos apenas 100, mas como eram muito bons, chegamos a 260, e terminamos aquele ano com 72 conveniados. Em função dessa construção e desse retorno, o programa foi ganhando mais força e, em paralelo, aquela idéia da BAC foi perdendo força. Ficou acordado que esse era o caminho, e o Congresso, depois da aprovação do presidente Lula, fez uma emenda parlamentar de R$ 55 milhões para o programa para 2005; quando comecei, tinha apenas R$ 5 milhões.

Como os Pontos de Cultura devem ser conduzidos pela nova gestão do MinC, com relação ao orçamento?
Tudo isso é muito novo e muito intenso, então a própria construção do mecanismo de transferência de recursos se deu dentro de um marco legal, que é a Lei de Licitações, que não é adequado à realidade dessas comunidades, dessa realidade viva. Essa implantação demonstra, hoje, seis anos depois, que é necessário um novo marco regulatório, pelo menos para estabelecer essa relação do Estado com a sociedade, respeitando a autonomia das comunidades e o seu protagonismo

Nós começamos o processo de forma direta, o MinC e entidades da sociedade. O programa cresceu de tal forma, que não se tem como administrar o projeto em algumas terras indígenas distantes diretamente. Começamos, a partir de 2007, a estabelecer redes com Estados e municípios. A rede fez com que o processo seletivo fosse para essas unidades da federação, descentralizando e incorporando novos recursos. Se é R$ 60 mil por ano, R$ 40 mil é o governo federal que coloca, R$ 20 mil é dado pelo Estado.
Em 2004, teve uma reunião do conselho de secretários estaduais de Cultura, com o ministro Gil, para protestar contra o programa, pois diziam que ele estava atravessando grupos que os secretários de alguns Estados consideravam que nem eram culturais, como uma comunidade quilombola. Queixava-se de alguns grupos serem contemplados, sem passar por eles.

São Paulo foi um desses Estados que reclamaram?
São Paulo tem tido uma atitude exemplar. O MinC não depositou a parte dele para o programa, a segunda parcela. O governo do Estado honrou e depositou a parte dele, que era de R$ 6 milhões, pagou 100 PCs. É uma política pública que ganhou uma hegemonia.

E agora com o corte orçamentário de 55% no ministério?
No ano passado, o orçamento foi de R$ 200 milhões, mas acho que não se realizou isso. O corte anunciado é grave, porque é de 55%, coloca o orçamento abaixo de R$ 100 milhões. Hoje são 3 mil Pontos de Cultura. São R$ 60 mil por ano para cada um; o custo para o MinC é de 2/3 disto – ou seja, R$ 40 mil/ano. Multiplicando, dá R$ 120 milhões.
De cara, 500 PCs, com certeza não vão ter seu recurso empenhado. Só que o programa Cultura Viva não é apenas PC, tem Pontão, tem prêmios para as ações Cultura e Saúde, Escola Viva, interações estéticas. O conjunto de prêmios no ano passado somou R$ 32 milhões – já se sabe, então, que este ano não haverá nenhuma ação. Ou se reverte esse corte orçamentário, ou se terá um calote previamente anunciado.

Outra proposta da nova gestão é com relação à profissionalização dos PCs. Seria uma tentativa de retomar a centralização?
Não se trata apenas de um problema de orçamento, mas de conceito, de filosofia. Volta-se às propostas das BACs, agora com o nome de Praça do PAC, que é, novamente, um pré-moldado, mas com muito mais recurso. Já se definiu qual a prioridade. Essa visão da qualificação, o que nós praticamos é qualificação, é desenvolvimento. Qual a base filosófica do Ponto de Cultura? Tem muito Spinoza, [Lev] Vygotsky, fenomenologia, Hegel. A construção do conhecimento e o processo de desenvolvimento a partir da aproximação entre as partes, ou entre os pontos. Vygotsky, por exemplo, percebeu, nos anos 1920, que o conhecimento das crianças dava saltos exatamente no momento em que uma criança se integrava com a outra. Essa foi minha referencia primeira, depois que cheguei a Spinoza, que pensava o fortalecimento da potência. É a capacidade humana que cada um de nós tem de agir e transformar a sua realidade.
Só que a história das civilizações é o oposto disso, é a depressão da potência das pessoas e a concentração de riquezas de conhecimento. Essa visão do qualificar, trata-se de qualificar quem? Qualificar do Estado para baixo, como se eu soubesse mais que os outros? Falo do Brasil de baixo para cima, que é um processo de desenvolvimento que acontece nessa visão do Estado-Rede.

Há, então, essa dificuldade de implantação de conceito no próprio ministério.
Logo que iniciei o programa, todas as pessoas que trabalhavam com o governo, até no Ministério do Planejamento, falavam que eu estava fazendo uma loucura, porque eu busquei fazer o convênio direto, um a um. Ia assinar convênio diretamente com caciques de aldeias indígenas. Na verdade o Ponto de Cultura é uma injeção direta na veia. Diziam para que eu deixasse ONGs e OSCIPs fazerem esse trabalho por mim. Mas e o protagonismo das comunidades? O objetivo era justamente fortalecer o protagonismo da sociedade. Fizemos uma inversão.
Uma pesquisa do IPEA demonstrou isso – cada PC atende, de uma forma ampla, levando em conta até quem foi assistir um filme no ano, 3.300 pessoas. Isso dá um público de 8,5 milhões de pessoas em torno dos PCs, dos quais 750 mil em atividade regular. Qual o custo disso? R$ 5 mil por mês, se você olhar, mal é o custo de um salário. Se você volta ao velho esquema da estrutura do “de cima para baixo”, mostra que, na verdade, quem quer qualificar é que deve ser qualificado. De um lado o Estado vai se ampliando e se abrindo, aprendendo a conversar com o menino do Hip Hop, e, de outro lado, o menino do Hip Hop vai se apoderando do Estado.

De que maneira a reforma da Lei do Direito Autoral interfere no andamento dos Pontos de Cultura?
Cada PC é de um jeito, mas o único elemento que é comum a todos eles é o Estúdio Multimídia, que é o equipamento utilizado para a construção do auto-retrato. Isto é, o povo pelo povo, o índio pelo índio, por meio da construção de narrativas. E se é gestão em rede, é preciso que cada um se disponha a trocar, numa interação identidade/auteridade. Normalmente, as propostas culturais, mesmo as mais de esquerda, se focam muito na identidade; o que buscamos no Cultura Viva é essa equação com a auteridade.

Esse é um dos problemas da comunicação, também. Você deixar, por exemplo, que a narrativa sobre o índio seja construída pelo próprio índio, e não pelo repórter.
É isso que queremos fazer. E hoje posso dizer que há uma rede de milhares de comunidades se apresentando por elas mesmas. É claro que são de redes diferentes, tem a questão de linguagem, mas o processo tem se dado. Um exemplo é o Índios Online.
Veja que essa composição da Cultura Digital é vital para a construção do Cultura Viva e ela parte de alguns princípios. Aquela discussão de tirar o símbolo dos Creative Commons (CC) pela marca. Na verdade, não é apenas uma marca [o CC], tem princípios: generosidade intelectual e trabalho colaborativo em rede. O que está por trás são formas de ver o mundo. Hoje a decisão não é do autor, é das editoras, ou seja, da intermediação. A lei não protege o autor, mas fundamentalmente protege a intermediação – que é uma forma de indústria que se acabou, não existe mais, pois ela tinha controle pelo físico, e o físico acabou. Uma obra de arte só é arte se ela é comunicada, se estabelece relação com alguém. Se ela fica trancafiada, ela deixou de se realizar.

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